Mike German foi agente secreto do FBI (Federal Bureau of Investigation) durante 16 anos. Trabalhou no combate ao terrorismo doméstico, às fraudes bancárias e à corrupção no setor público. Nos últimos anos de trabalho na organização, ele se dedicou ao terrorismo interno. Por exemplo, na infiltração de grupos suspeitos.
Aparentemente, este tipo de trabalho se tornou supervalorizado nos Estados Unidos depois de 11 de setembro de 2001, mas foi justamente depois dos ataques ao World Trade Center e ao Pentágono que os problemas de Mike começaram, a ponto de levá-lo a deixar o FBI. Hoje, Mike German trabalha para a ACLU - a União Americana para as Liberdades Civis.
Viomundo - Que tipo de mudanças o senhor percebeu que estavam acontecendo, dentro do FBI, depois dos ataques de 11 de setembro?
Mike German - As normas de conduta, criadas nos anos 70, em resposta aos abusos cometidos pelo FBI no programa de contra-inteligência, que espionou americanos que não eram suspeitos de nada, mudaram. Naquela época, usaram truques sujos para impedir as pessoas de divulgarem suas ideias políticas. Por isso, foram criadas as normas de conduta. Mas com o tempo, elas foram modificadas. Principalmente em 2002 quando o procurador-geral da Justiça, John Ashcroft [do governo de George W. Bush], alterou o grau das provas exigidas para permitir ao FBI começar a investigar alguém.
Viomundo - Pode nos dar exemplos de como essas regras mudaram?
Mike German - Eles expandiram o que se chamava antes de inquérito preliminar. Anteriormente, nos anos 70, este inquérito preliminar dava aos agentes do FBI, que tinham alguma informação ou alegação contra alguém, a oportunidade de investigar. Descobrir se era verdade ou não, se a pessoa que estava prestando informação era confiável. Se havia informação suficiente para abrir uma investigação. E isso tinha limites em matéria de tempo e de alcance. E as técnicas permitidas também eram limitadas, tinham que ser menos invasivas. Com as normas do Ashcroft, em 2002, expandiu-se o prazo que essas investigações poderiam durar e número de técnicas empregáveis, bem mais invasivas, mesmo que não houvesse base racional alguma para acreditar que uma pessoa havia feito algo de errado. Bastava uma alegação ou uma dica.
Viomundo - Que tipo de técnica passou a ser usada? Escuta telefônica, por exemplo?
Viomundo - Que tipo de técnica passou a ser usada? Escuta telefônica, por exemplo?
Mike German - Não. Essas técnicas que exigem ordem da justiça, não. Mas passaram a vigiar de perto, entrevistar amigos e conhecidos... imagine o impacto que tem o FBI entrevistar o empregador de alguém a respeito da possibilidade dessa pessoa ter feito algo errado. Isso tem impacto na vida da pessoa, se ela for acusada por algo ou não. Portanto, estávamos muito preocupados com essa expansão. Mas em 2008, o procurador-geral Michael Mukasey ampliou ainda mais as regras e eliminou a necessidade de qualquer tipo de antecedente. Literalmente, os agentes do FBI passaram a ter o direito de investigar quem eles escolhessem. E expandiram os meios que podem ser empregados nessas investigações de forma muito preocupante. Por exemplo: de acordo com as normas antigas, o FBI podia receber dicas de um informante e incorporá-las em uma investigação. Mas não podia, jamais, recrutar alguém para levantar informações sobre alguém contra quem não existia base para se pensar que estivesse fazendo algo errado. De acordo com as novas normas, o FBI pode encontrar alguém e dizer: "Quero que você vá naquela igreja e encontre este tipo de informação". Ou seja, mudou completamente a maneira como o FBI usa informantes. Eles criaram uma categoria de investigação ainda mais ampla, chamada informação étnica e demográfica, na qual listam o que chamam de comportamento racial e étnico. Estão transformando comunidades inteiras em alvo somente por causa da raça ou da etnia. Isso é um problema sério.
Viomundo - Que tipo de informantes eles estão contratando para os casos de terrorismo?
Mike German - Todo tipo. E todos são problemáticos porque você não sabe quais são as motivações reais da pessoa. E tem menos controle sobre eles, se compararmos com agentes secretos do FBI cujo salário e o tipo de caso em que podem trabalhar são monitorados. Além do que, os agentes têm interesse em subir na profissão e para isso, sabem que não podem violar as regras. Existem também os informantes que tiveram problemas, têm pena a cumprir, estão na cadeia e querem fazer um acordo para se livrar. Existem, também, pessoas que não gostam de alguém e querem causar problemas àquela pessoa. Antes da mudança nas regras, tivemos vários casos em que o informante se revelou ruim. Essa é uma das áreas mais perigosas no FBI.
Viomundo - E esse tipo de informante está sendo usado mais e mais?
Mike German - Mais e mais cedo. Agora, usam esses informantes quando não existe suspeito. Eles saem em expedições de caça. E é claro que a motivação do informante é encontrar algo. E se não existe nada, como você disse, eles podem inventar.
Viomundo - Não sei se o senhor concorda, mas me parece que depois do 11 de setembro se construiu uma imagem preconceituosa dos muçulmanos, o que pode ser usado de forma muito ruim...
Mike German - Existem vários casos em que esses informantes são enviados a mesquitas ou comunidades religiosas nessas expedições de caça. Para levantar informações de forma muito ampla. E existem fortes indícios de que esses informantes estão criando planos, são o centro de um plano de ataque. São eles que estão planejando e fornecendo o material. Eles é que são, supostamente, conectados com a Al Qaeda ou qualquer outro grupo terrorista, enquanto as pessoas recrutadas nunca tiveram qualquer contato com o terrorismo, nunca tiveram acesso ao tipo de arma que o informante do FBI deu a eles. Portanto, não haveria ameaça, não fosse pela intervenção do governo.
Viomundo - Há 20 anos um caso desses não seria levado a sério?
Viomundo - Há 20 anos um caso desses não seria levado a sério?
Mike German - Eu fiz esse trabalho por 10 ou 15 anos. Não. O FBI não aceitaria que eu estivesse envolvido em uma investigação de terrorismo na qual todas as armas tivessem sido fornecidas pelo FBI. Ou em que o FBI tivesse criado o plano. Pelo contrário. Essa é uma preocupação séria: você não pode armar uma cilada. Tem que ser um plano da pessoa e o agente do FBI, no máximo, vai dar apoio. Mas não vai sugerir alvos, nem fornecer armas. Muito menos aumentar o grau da ameaça.
Viomundo - Como assim ‘aumentar o grau da ameaça'?
Viomundo - Como assim ‘aumentar o grau da ameaça'?
Mike German - Se essas pessoas, em vários desses casos, tivessem dito algo errado e o FBI oferecesse um rifle e perguntasse "você quer atirar em alguém?" e a pessoa dissesse que sim, muito bem, prenda essa pessoa. Mas dar a essa pessoa um míssil cheio de explosivos, que ela nunca poderia comprar, me parece um teatro para convencer o júri de que essa pessoa é bem mais perigosa do que os fatos indicam. De acordo com a minha experiência, a ideia de que uma pessoa que não tem armas e não está fazendo planos de ataque - antes de aparecer alguém enviado pelo governo - é um terrorista, me parece um uso ilícito dos recursos do governo para envolver essas pessoas nesses planos. Não é lícito o governo tentar produzir um grande caso na imprensa. Aumentar a ameaça. Na verdade, isso é pior para o país porque promove suspeita a respeito de algumas comunidades e cria divisões perigosas na nossa sociedade.
Viomundo - Esse tipo de exagero vira manchete nos jornais, assusta o júri e pode também influenciar os juízes?
Viomundo - Esse tipo de exagero vira manchete nos jornais, assusta o júri e pode também influenciar os juízes?
Mike German - Claro! E mais do que ninguém, eles [os juizes e o júri] preferem errar por terem sido super cuidadosos. Especialmente quando o governo pode apresentar um míssil [como prova, no tribunal]. Mesmo que eles achem errada a atitude do governo, temem pela comunidade se deixarem essa pessoa livre. Com esse tipo de teatro, o governo sempre aponta para esses casos como justificativa para ter ainda mais autoridade. Mais direito de usar escutas e informantes. Consideram casos de sucesso e não como algo que está prejudicando nosso sistema jurídico.
Viomundo - O senhor vê paralelos entre esses abusos do presente e outros momentos da história do país?
Mike German - Com certeza! O FBI e a ACLU [American Civil Liberties Union] foram criados nas mesmas circunstâncias, no começo do século XX, quando havia muita violência dos anarquistas nos Estados Unidos. Comparando com os dias de hoje, era muito pior. Bombas, assassinatos... E o governo respondeu pegando os suspeitos de sempre. Perseguiu pessoas que tinham as mesmas ideias. Foi atrás dos imigrantes e os deportou sem provas de que tivessem feito algo errado. E a ACLU foi formada para proteger esses imigrantes. Com certeza, já tivemos outros momentos de crise com reações exageradas.
Viomundo - O senhor compararia o que acontece agora com a era do macarthismo [de Joseph McCarthy, o caçador de comunistas que aterrorizou o país nos anos 50]?
Mike German - Claro! Eles promovem essa ideia de que existe um caminho típico para se tornar um terrorista. E todos os estudos sobre terroristas mostram que não é verdade. Não existe um caminho único ou um perfil do terrorista. E não existe conexão entre ideias ruins e conduta ruim. Ainda assim, essa teoria está sendo usada para transformar comunidades religiosas e ideológicas em alvos. Estamos assistindo, também, à infiltração de grupos de ativistas. De protestos. O que nos lembra muito a história do FBI nos anos 50, 60 e 70. Na época, tentavam barrar o trabalho dos movimentos sociais, das organizações de direitos civis e, com os truques sujos, não estavam defendendo a segurança nacional, mas simplesmente o status quo. E é o que estamos vendo novamente. Nós documentamos a infiltração e a obstrução de atividades garantidas pela Primeira Emenda à Constituição em 33 estados e no Distrito Federal, desde 11 de setembro [emenda que garante a liberdade de religião, de expressão, de imprensa, de associação, entre outras]. Portanto, não é um problema pequeno. E não é apenas o FBI. São as autoridades estaduais também, a comunidade de inteligência do governo federal. É uma ampla campanha que tem como alvo pessoas que não estão fazendo nada de errado, mas defendem mudanças políticas ou sociais que ameaçam o status quo.
Viomundo - Com a eleição do presidente Barack Obama existia muita esperança de que esse tipo de abuso seria barrado. Representantes da comunidade muçulmano-americana estão decepcionados.
Mike German - A oportunidade que esse governo teve de olhar para esse problema de forma diferente, infelizmente foi desperdiçada, porque as mesmas pessoas da comunidade de inteligência que adotaram essas mudanças foram mantidas [no governo]. E elas vão relutar muito em dizer que a política adotada, por eles, anos atrás, foi muito ineficiente.
Heloisa Villela, de Washington
Fonte: Jornal A Verdade
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